18/05/2008

Debaixo da calçada, a praia. Sejamos realistas, exijamos o impossível.

Deixemo-nos de hipocrisias. Não é isto que todos queremos? Em 68 alguém veio para a rua gritar os sonhos de (quase) todos nós.

Foi preciso esperar 40 anos para a nossa intelizzencia conservadora vir conspurcar a herança do Maio de 68, reclamando o fracasso do movimento em termos políticos, o fim da noção tradicional de família e por aí fora, chegando mesmo a referir-se a Maio de 68 como tendo sido apenas “ uma revolta festiva” como acrescentou José Manual Fernandes no seu editorial do Público de 2 de Maio.

A herança é vasta. Enuncio aqui apenas parte do inventário do que mudou no nosso quotidiano: a democratização da pílula, o aborto livre e emancipação do segundo sexo, que até então era o fraco; aulas mistas; maioridade aos 18 anos; maior mobilidade social; reforma da escola, entre muitas outras. Maio de 68 foi e é a possibilidade de dizer “não” e “basta”.

E faço minhas as palavras de Manuel Villaverde Cabral: “A retórica espontaneísta do ‘contra’ deixou marcas profundas e a actual paisagem humana e social seria bem diferente sem ela: contra o Estado e os seus mecanismos de enquadramento; contra a família convencional e o recalcamento sexual; contra o racismo e a subordinação das mulheres e crianças; contra a escola disciplinadora e reprodutora das desigualdades; contra o trabalho penoso e o consumo alienante, etc. Tudo isto é irreversível, tendo sido absorvido e massificado até ao limite do relativismo ante a falência das crenças autoritárias. E a prova está feita. Quando Sarkozy mobilizava recentemente os conservadores com o ódio ao legado de Maio, estava a esquecer-se de que era esse legado que lhe permitia casar e descasar em directo na televisão.”

Termino com uma frase de Clarice Lispector “ A liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome”.

Marta

3 comentários:

sophia disse...

Pertenço a uma geração que já nasceu com as ditas conquistas do Maio de 68. Tenho que confessar uma certa repugnância com as manifestações histéricas das "queimas dos soutiens" e das conquistas da igualdade de direitos e quotas, etc. A geração das nossa (privilegiadas)mães muito terá beneficiado da libertação do jugo marital que as impedia de viajar e dispôr dos seus bens plenamente sem a autorização dos respectivos conjugues. A minha mãe apesar de quatro filhas, fez o seu precurso profissional com brilho em que o facto de ser mulher apenas funcionou como um factor a seu favor e não como impedimento ( de uma forma geral, claro!).Era um caminho natural numa sociedade dita moderna e democrática, muito teremos beneficiado certamente, mas essa memória parece-me absolutamente datada e já pertencente a um passado distante. Vivemos hoje com as dificuldades que os nossos pais nunca tiveram, não temos avós disponíveis para ajudar a tomar conta dos nossos filhos, naturalmente como o fizeram as nossas avós, não temos contratos de trabalho, não temos estabilidade, vivemos numa corda bamba com as cabeças no cepo, enterrados com divídas até ao pescoço,até ao fim dos nossos dias.
Memórias distantes essas do Maio de 1968, sejamos realistas exijamos novos e urgentes impossíveis.

Marta disse...

Sofia, hoje a queima dos soutiens parece uma coisa datada e eventualmente de gosto discutível porque justamente já pertencemos a uma geração que nasceu com as ditas conquistas de 68.A queima dos soutiens não passou de um acto simbólico. O soutien simbolizava apenas a opressão a que estávamos, nós mulheres, sujeitas. Como sabes não sou femininista, mas aprecio o facto de ser tratada com respeito e igualdade, como adulta entre iguais, ao contrário das nossas “privilegiadas” mães e avós.

E permite-me discordar da relação que estabeleces entre este “importante” legado e as actuais condições de vida. A precariedade das condições de trabalho a falta de tempo e o consumo excessivo não são fruto do Maio de 68. Por último, a maioria dos portugueses vive hoje melhor do que há 40 anos: não preciso de te enunciar o decréscimo da taxa de mortalidade infantil e do analfabetismo, e o consequente aumento da escolaridade, da mobilidade social e do acesso a bens de primeira necessidade, entre outros.

E agora a brincar Sofia, diria-te para voltares a espreitar debaixo da tua calçada!

sophia disse...

Serra, também não me parece em absoluto que a evidente melhoria das condições de vida seja fruto de um legado do Maio de 68, não é a ele que devemos o radical decréscimo da mortalidade infantil, nem a escolaridade generalizada, nem a mobilidade social,( esta obedece hoje a mecanismos que em muito pouco diferem dos anteriores a 74, continuamos uma sociedade de padrinhos e afilhados...) etc. Continuo a pensar que foi um movimento que em Portugal foi um eco ligeiro e muito distante do que se passou em França e que na verdade pouco impacto teve na sociedade portuguesa, a não ser nos meios em que já não era de todo urgente. E continuo a pensar que a nossa geração está a assistir de perna cruzada, à perda e corrosão da conquista de bens fundamentais numa democracia, que em muitos aspectos estamos a perder direitos sociais fundamentais como o direito à saúde à justiça e à educação universais e gratuitas. Que a sociedade eventualmente sonhada pela geração de sessenta em muito pouco ou nada tem a ver com a sociedade portuguesa de hoje, não é por acaso que se assiste a um regresso ao país de imigrantes, não é por acaso que o desinteresse pela actividade política é generalizado em que a massificação e alienação da sociedade através do consumo é mais evidente, em que sobressai mais a substituição do analfabetos por iletrados,...
O magnífico programa de António Barreto traçou um retrato nada optimista, quanto a mim, e muito realista das mudanças sociais do Portugal de sessenta e do de hoje.