11/01/2008

Comunidade

Morreu Luís Pacheco. Era talvez, uma personagem entre o provocador, o marginal e o sociopata, que nos deixou páginas mordazes e ( pelo menos ) um texto lindíssimo, "Comunidade". Passaram a propósito da sua morte, um documentário na RTP2 verdadeiramente hilariante, com episódios imperdíveis contados entre gargalhadas pelo seu editor ( da & Etc.), por Mário Soares, e outros. O texto Comunidade é de uma beleza extrema, contrariando em tudo a ideia que eu estupidamente preconcebia de que a sua obra seria marginal e a sua escrita, uma escrita "abjecta". Nunca é tarde para fazer uma descoberta como esta, Comunidade.
"Vamos na jangada. Já estamos tão habituados que nem reparamos (é mesmo assim!). Antes de nascer o bebé, o Paulo Eduardo, era pior: havia sempre o receio por esse desconhecido, cuja cara não víamos, escondida como estava na barrica barriga da mãe, e não sabíamos quem era e como era e o que queria. Talvez um inimigo. Talvez um diferente de nós. Talvez um descontente. Um intruso. Ele só dava sinais (aliás incompreensíveis, para quem não tiver grande prática), através de umas palpitações, remexidelas, cambalhotas, pontapés no escuro ( longa noite primeira, o denso mar original), cabeçadas sob a pele de tambor esticada do odre materno. Mas apareceu e já estamos mais sossegados. Não é um estranho nem um inimigo. É um bebé, apenas um bebé. Um igual a tantos, ao que já fomos, e chora e borra e mija e mama como todos os bebés. Mama como quem está a puxar a vida do corpo da mãe, vida quente e docinha, tão fácil! tão gulosa!, para dentro dele. Caga e mija como quem ri do mundo, do muito que nele há para a gente rir, misérias e tristezas, aleluias e horas de prazer, que tudo vale o mesmo e tudo é o mesmo fumo e tem o mesmo fim. Chora como quem já sabe isso." Publicado pela Perve Editora 2007

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